O que chamamos de “traficante” é, na verdade, apenas o trabalhador do varejo do mercado ilegal - aquele que morre nas “guerras urbanas”, que enfrenta o BOPE sem camisa e de chinelo no pé. É o elo mais fraco de uma cadeia produtiva que reproduz, com brutal clareza, a estrutura do capitalismo dependente.
Ele é o operário precarizado da economia ilícita, o corpo descartável sobre o qual se ergue o lucro dos verdadeiros donos do negócio: os financistas, os empresários da lavagem, os políticos e policiais corrompidos que fazem o sistema girar.
Metade do Congresso que o bozismo elegeu tem alguma ligação com esse mercado - direta ou indireta - e dele depende para manter relevância econômica e peso político.
A “guerra às drogas” é o nome moral que o Estado dá à gestão desses corpos descartáveis. O poder moderno não se define mais apenas por quem vive ou morre, mas por quem pode ser morto sem escândalo. O jovem negro, periférico, envolvido no tráfico, é o exemplo mais cruel dessa necropolítica tropical: uma vida matável, morte administrável por uma contabilidade macabra feita em lugares como a Faria Lima.
Enquanto isso, o capitalista - o dono dos meios de produção desse mercado - vive tranquilo, em Alphaville, Leblon ou Miami, multiplicando seus lucros em dólares. É ele quem financia políticos como Jair e Tarcísio, ou o inexpressivo governador do Rio cujo nome nem lembro. Representantes de um moralismo que condena e mata o pobre delinquente e deixa nas sombras aquele que o seduz e contrata para a delinquência e para seu lucro insano. O bozismo é, sempre foi, nesse sentido, o braço político da milícia e do narcocapitalismo: a versão institucional da violência privatizada.
O tráfico e a milícia são, afinal, a mesma engrenagem - duas faces do mesmo mercado de controle territorial e acumulação primitiva. Um vende pó, outro vende segurança, mas também vende pó. Ambos produzem morte e lucro. E ambos servem a um mesmo senhor: o capital.
Por isso, o que Lula disse - e que tanto escandaliza as elites morais - é simplesmente o óbvio: o traficante do varejo não é o inimigo ontológico do Estado, mas seu produto histórico. A formulação correta e que escapou à Lula seria: “os traficantes do varejo são tão vitimas do mercado ilegal quanto os usuários, os consumidores desse mercado”… Vitimas do mercado ilegal cujo dono dos meios de produção não está nas favelas e periferias. E que nunca é pego pelas operações policiais.
Na verdade, toda a América Latina é vítima de uma economia mundial que precisa do tráfico para produzir cadáveres nos países latinos, controlá-los por dentro pelo ódio, pelo medo, pelo apartheid moral, e lhes impor políticas cada vez mais antipovo - tudo para facilitar o saque de suas riquezas.
É curioso que a chamada “guerra às drogas” só exista como guerrilha armada nos países do Sul Global, enquanto as nações que mais consomem drogas - Estados Unidos e Europa - jamais conheceram o equivalente das nossas balas perdidas.
Mais curioso ainda é ver Donald Trump assassinar pessoas no mar do Caribe, em águas internacionais, apenas com a alegação unilateral - sem julgamento, sem provas - de que seriam “traficantes”. E fazê-lo sem jamais ser chamado de terrorista.
Na visão de Trump, os “traficantes” e “bandidos” somos nós, latino-americanos. Eles, os grandes consumidores, seriam apenas pobres vítimas do vício - cidadãos enganados por nossa “barbárie tropical”. E o mais trágico é que muitos de nós, aqui mesmo, nos nossos países, batemos palmas para esse delírio colonial, repetindo o discurso do opressor como se fosse sabedoria moral.
Por isso digo e repito: Lula está certo!







